CONTRABANDISTAS
Nas décadas que antecederam a “abertura de fronteiras” dos países que aderiram e subscreveram o famigerado acordo do Espaço Schengen, procediam as populações das localidades situadas junto à raia que divide o nosso País de Espanha, um conjunto de transacções de produtos, que não sendo pecado, constituíam à luz da legislação em vigor na época, um acto ilícito, que defraudava o erário público, (finanças), e que chamava contrabando. Para tentar debelar, essa prática ilegal de comércio, criou o Estado Português, uma força de vigilância,
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e controle de fronteiras, e dos direitos alfandegários, com o nome de Guarda Fiscal; no outro lado da fronteira, existia uma outra força policial, cuja missão era idêntica à da Guarda Fiscal, e que tinha por designação, Los Carabineros[1].
O precário nível de vida, que as gentes da região raiana tinham que enfrentar, devido às fracas remunerações, auferidas por quem trabalhava na única actividade existente na zona, e que era o trabalho rural, nas casas agrícolas a laborar na região, dava azo, a que os homens considerados válidos se entregassem pela calada da noite, a esta tão antiga ocupação, considerada crime, nessa época.
Onde havia raia, havia contrabando[2], e havia também histórias de contrabandistas, contadas por pessoas, que no escuro da noite, seguiam por caminhos traçados e imaginados, em direcção á raia. Iam curvados sob o peso das cargas de café, e com receio de serem descobertos pela Guarda Fiscal, ou pelo Carabineros. Com os olhos vigiavam o caminho, com os lábios, alguns deles, os que sabiam rezar, recitavam orações, porque sabiam que era na área do sagrado, que podiam procurar ajuda, para que o pé fosse leve, apesar do peso da carga, e para que os fardados, alguns dos quais, tinham sido já eles, próprios, contrabandistas, não lhes saltassem ao caminho; se isso acontecesse, era largar a carga, e fugir dali, sem se deixar apanhar, evitando assim, as mais que certas berduadas, com que os fiscais aduaneiros, os brindavam, depois de lhes terem confiscado a carga. Ao serem interceptados, perdiam o folego, perdiam a carga, e perdiam também o dinheiro de uma noite inteira de caminho e sacrifício; era assim, por toda a raia.
Na série televisiva “A Raia dos Medos”, Francisco Moita Flores, aborda esta saga, com a mestria e a arte, que lhe são peculiares, as dificuldades que a dura vida das gentes da raia exigiam. Ao cair da noite, nas pequenas localidades vizinhas da fronteira, incluindo Barbacena, formavam-se grupos, traçavam-se caminhos, vigiava-se a Guarda Fiscal, na habitual luta, entre o gato e o rato, e despareciam no escuro, para ganhar a vida; frequentemente, deparavam com cruzes, feitas em pedra granítica, assinalando a morte de um companheiro seu, que que se recusou a parar, quando lhe foi dada ordem, para o fazer, e esse encontro com o símbolo da morte, para além do normal arrepio de espinha, e o instintivo sinal da cruz, feito com a mão direita, sobre o peito, fazia-lhes soltar uma imprecação, e uma prece.
Nas famílias, logo que os mais novos tinham forças, para com os adultos caminharem as longas distâncias, entravam no grupo; era assim com eles, porque já tinha sido com os seus pais, e com seus avós.[3] Na zona raiana vizinha de Barbacena, a mercadoria contrabandeada, para Espanha, era essencialmente café, visto ter ainda Portugal, a posse sobre as então colónias, das quais Angola, era uma das maiores produtoras, exportadoras, desse exótico produto. No regresso. Tentavam os nossos contrabandistas, trazer a bom preço, peças de vestuário, calçado, perfumes e talheres, produtos esses, que embora baratos, eram também de fraca qualidade.
O contrabando, tal como outra qualquer actividade que envolva aventura, riscos e perigos, tem certamente, inúmeras histórias, que ainda não foram contadas. Cada contrabandista, cada guarda fiscal ou carabinero[4], tem certamente, as suas histórias, para contar; até aos dias de hoje, pouco se tem escrito sobre esta actividade comercial, que há algumas décadas, era considerada crime.[5]
Setúbal, 09 de Agosto de 2018
Eu sou o coelho campal
Que em toda a parte faz cama
Anoiteço em Portugal
Amanheço na Espanha
Manuel Leal Freire, Contrabando, delito mas não pecado
Umas notas sobre a guarda fiscal
A Guarda Fiscal foi criada pela Monarquia Liberal, em 1885, com o objectivo de impedir o contrabando e sujeitar os produtos à cobrança dos respectivos impostos aduaneiros. A GF realizava a mais dura fiscalização das alfândegas portuguesas, a fiscalização externa, estando o seu dispositivo presente nos mais recônditos lugares da fronteira marítima e terrestre. Com o 25 de Abril de 1974 foi incubida de fiscalizar a entrada e saída de cidadãos do país, serviço antes desempenhado, pela PIDE/DGS. Em 1993,inesperadamente, e muito por força do Ministro da Administração Interna, Dias Loureiro, A GF é extinta e integrada, como Brigada Fiscal, na GNR. A partir dessa data o declínio da instituição foi notório. Muitas das suas competências foram progressivamente deixadas ao abandono pelos comandos da GNR, passado a ASAE, ou a Polícia Marítima, a ter de assegurar essas missões. Em 2008, e por reforma do Ministro da Administração Interna António Costa a Brigada Fiscal é extinta.
Os guarda fiscais eram apelidados de "picachouriços" devido à sonda, uma vareta em ferro, que usavam para introduzir nas sacas de produtos a granel, para verificar se nelas vinham escondidos produtos de contrabando.
IN - picachouricosgf.blogspot.com –
https://sites.google.com/site/picachouricosguardafiscal/
[1] Guarda da alfândega espanhola.
"carabineiro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/carabineiro [consultado em 11-08-2018].
[2] No Decreto- Lei nº31664 de 22 de Novembro de 1941, no Capítulo II, Secção I, o contrabando é definido como sendo “toda a acção ou omissão fraudulenta que tenha por fim fazer passar no país, ou sair dele quaisquer mercadorias sem passarem pelas alfândegas”. Entende-se ainda como contrabando “a circulação de mercadorias que, não sendo livre, se efectue sem o processamento de guias, ou outros documentos requeridos. Assim, os produtos eram apreendidos por motivo de importação ou exportação ilegal, ou por transgressão por falta de guias.
[3] Os contrabandistas que saiam de aldeias situadas longe da linha de fronteira tinham de percorrer grandes distâncias e ficavam expostos aos postos de 1ª e 2ª linhas, por isso, o contratador optava por vezes por marcar pontos de encontro junto da fronteira. Para se ter uma ideia do perigo que se corria, basta referir que entre os anos de 1970/75 um carregueiro que levasse a sua carga até à raia (sentido Espanha Portugal) ganhava 45$00. Se levasse a carga para uma aldeia como a Malhada Sorda já ganhava 70$00. Na década de 80, os preços iam até aos 75$00 para os primeiros e os 120$00 para os segundos.
[5] Numa zona rural, a proximidade da fronteira permitiu que o amanhar dos campos fosse acompanhado pela prática do contrabando, actividade que trazia mais rendimentos para a casa. De dia era uma zona de agricultores, à noite de contrabandistas.
Na mesma aldeia viviam Guardas Fiscais e Contrabandistas, as duas faces antagónicas do contrabando. Conviviam e ocupavam os mesmos espaços, quer nas aldeias, quer nos caminhos percorridos.
Ambos conheciam esses caminhos, mas por motivos diferentes. Uns vigiavam-nos, outros percorriam-nos trazendo e levando mercadorias que alimentavam o comércio de ambos os países.
Estes caminhos eram o sustento de ambos.
Hoje, já não há contrabando, pelo menos o praticado nos moldes aqui referidos e deixou de haver necessidade de vigiar a linha de fronteira.
Os Guardas Fiscais foram transferidos ou regressaram às suas terras e os caminhos deixaram de ser percorridos. Acabaram-se as aventuras e as histórias e as memórias foram-se perdendo. E são estas memórias que devem ser recuperadas porque deram vida e sustento a todas as aldeias da zona raiana e permitiram intercâmbios económicos, culturais e linguísticos em ambos os lados da fronteira.
O contrabando foi o pão que alimentou muitas bocas e foi também um bom contador de histórias
- Notas de rodapé são do trabalho:
- Centro de Estudos Ibéricos
- (PDF) Caminhos do Contrabando
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