HISTÓRIAS DE VIDA
O ÉBRIO, QUE ERA CANTOR DE INTERVENÇÃO
Já poucos, cá pela Vila, dele, se lembrarão; todavia, eu
lembro-me bem dele, até que sempre, existiu entre nós, uma reciprocidade de
estima e respeito, que perdurou até à sua morte.
Descendente de uma família espanhola, que por cá se instalou, talvez no tempo
da Guerra Civil do país vizinho, ou mesmo antes desse fratricida conflito,
desde muito novo, que aprendera a profissão de "alvenéu" (pedreiro)
actividade essa, que sempre exerceu, intervalando apenas, durante algum tempo,
em que laborou numa unidade fabril da capital, onde residia uma sua irmã.
Regressado a Barbacena, de onde era natural, retomou a actividade de pedreiro.
Cortês e respeitador, nunca vi, que em ocasião alguma, que prevaricasse, fosse
quem fosse, mesmo em ocasiões em que não estivesse, suficientemente sóbrio. Era
o nosso amigo Adelino Caturrinho Rosado, (era este o seu nome),amante
incondicional de uns copitos de vinho, que ingeria pelas diversas tascas da
Vila, e quando ficava meio toldado, tinha por hábito, cantarolar umas cantigas
que trouxera da capital, as quais suscitavam aos ouvidos mais atentos, uma
certa suspeição, e uma certa graça, pois falavam de algo proibido, naquela
época; sentado num banco que ainda hoje existe, sito na Praça do Pelourinho, e
do qual, eu tive o cuidado de obter uma fotografia para ilustrar esta "estória", de boina basca, colocada "à banda" na cabeça, Adelino, trauteava,
com ares e estilo de jogral, cantigas proibidas, que eu, adorava ouvir. Falavam
aquelas trovas, de algo, que era impensável, ouvir-se naquele tempo. Criticavam
acremente, o patrono do regime vigente, e por muito estranho que pareça, nunca
aquelas letras proibidas, foram detectadas, pelas forças da ordem, que insistentemente
patrulhavam as ruas da nossa terra; no entanto, o barulho, causado pelo
´´cantor de intervenção´´, era objecto de censura, e admoestação, por parte
desses mesmos agentes da autoridade; cantava assim, o nosso homem:
Oliveira do Hospital
Segundo oiço falar,
É perto de Santa Comba
Terra que nos deu azar...!!
Oliveira do Hospital
Que ao povo doente ilude
Afinal, é o Oliveira,
Quem nos trata da saúde..!!
Tem o Oliveira um pomar,
E uma horta, que é um brilho
Pois nós, cavamos a terra,
E ele é que guarda o milho.
Nunca teve, como já frisei, problemas com as autoridades, por
motivos relacionados, com o teor dos versos proibidos que cantava todavia, o
mesmo não acontecia, em relação ao barulho, provocado, pelo alarido, causado
pela sua cantoria.
Lembro-me, que num Natal, ou Ano Novo, não posso precisar, durante a década de sessenta,
do século passado, durante uma cerimónia religiosa nocturna, Adelino, escolheu
como cenário da cantilena, precisamente o portal da igreja da Senhora do Paço,
onde se celebrava a missa; quando cheguei, apenas tive tempo, de o levantar do
lugar onde estava sentado, e carregando-o ao ombro, desviei-o de um bastão, que
já zurzia no ar, empunhado por um elemento da GNR quando o deixei sobre um
velho catre, em sua casa, mal sabia eu, que não voltaria a vê-lo, pois quando
voltei à terra soube, que ele - aquele homem livre -, que escolhera o seu
próprio destino, tinha falecido, junto à entrada de um qualquer hospital de
Lisboa, do qual tinha sido despejado, havia poucas horas, pouco antes de Abril,
ter chegado a Santa Comba Dão, terra que fica perto de Oliveira do Hospital.
Barbacena,30 de Janeiro de 2019
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