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A Jumenta abstémia

A JUMENTA ABSTÉMIA

Lenta, como tudo no Alentejo, a madrugada despontava, quando o tio Zé se fez ao caminho, escarranchado no dorso da sua Mimosa, uma meiga burra, seu veículo de transporte, que utilizava, nas constantes vindas à Vila, e aos montes das redondezas. O fiel cão Poeta, também os seguia para qualquer lado, qual elemento de segurança, e que cuja passividade e bonomia, se coadunavam com as demonstradas, pelos outros dois elementos da caravana.
O céu alentejano, que naquela altura do ano, geralmente, ostentava um azul ímpar, mostrava-se naquele dia, um pouco nublado, e exibia um vistoso arco íris; o sol, gatinhava resplandecente, por entre farrapos de nuvens frágeis, desmaiava coberto de quando em vez, pelas ditas nuvens altas, num chão poeirento, com cheiro a ervas, e pássaros silvestres, num campo de perder os olhos, e a vista.

Nestas paragens, daquele Alentejo interior, é possível ainda hoje, escutar com vagares, e lucidez, todo o silêncio e a quietude, dos sons das aves, dos montes e ribeiros, o timbre do voo das cegonhas, sobre a ondulação das poucas searas, que se avistavam por entre azinheiras e sobreiros.
Naquele dia, o nosso amigo Zé tinha combinado com um outro seu amigo, e vizinho de um monte ali perto, que como ele, tinha um considerável rebanho de ovelhas, ir ajudá-lo na trabalhosa missão da separação dos anhos, das respectivas progenitoras; a chamada “apartação”,
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Ajeitando o coçado boné às riscas, cuja pala puxou para cima dos olhos, levava o polegar da mão esquerda, no cinto das calças de ganga, que lhe descaiam da cintura; era o tio Zé, um homem simples, um sábio, um coração de ouro. Como a Mimosa tivesse parado, no preciso momento, em que com eles, me cruzei, quando eu cumpria mais uma caminhada matinal, por aquelas bandas, deu a entender ao dono, que queria evacuar, o que veio efectivamente, a suceder, aproveitando o nosso amigo, o ensejo, para embrulhar mais um cigarro de onça, que acomodou no canto da boca, enquanto me dirigia algumas palavras de saudação. Nesse intervalo, da jornada, o dócil animal, debitou para o chão, um considerável amontoado de excrementos. Era a Mimosa, um animal, que conhecia tão bem aqueles caminhos, por entre carreteiras e azinhagas, como conhecia as suas patas. Enquanto falava comigo, o amigo Zé, passou a mão de mansinho no pêlo castanho clarinho, impecável da jumenta, e disse:
-bonita burra!

Disse em voz alta, de forma a que eu ouvisse o elogio que fazia ao animal; uma risca branca evidente bordava-lhe os flancos; era a sua princesa; pestanas fartas, e eriçadas, uma madeixa na nuca, por entre as orelhas espetadas, olhos gulosos ternos e meigos, infinitos. Entre eles, o dono, e a mimosa, e até mesmo o fiel cão Poeta, havia uma certa cumplicidade, que se veio a confirmar, no decorrer de uma confissão, que o tio Zé, fez em jeito de confidência, não a mim, mas a alguém, por entre a ingestão de uns copitos de tinto, nas habituais “tertúlias” que o bom homem fazia mais os amigos, na extinta taberna do João Ástias, ou na do Pataquinha, não posso precisar,em que ele confessou, que um belo dia, quando depois de fazer o avío em Barbacena, e de ter cumprido a ´´via sacra`` pelas ´´capelinhas´´ (tabernas) da Vila, na companhia dos amigos, degustando os bons néctares alentejanos, ficou o amigo Zé, um pouco ´´azoado`´, tendo ainda no entanto, discernimento bastante, para se acomodar em cima da sua Mimosa, que presa pela rédea enfeada na argola, cravada na parede á porta da taberna do tio Manuel da Cândida, esperava pacientemente, por ele, sacudindo com a cauda, as incomodativas moscas, que a martirizavam.
Segundo a descrição, que, de há muito, deixou de ser segredo, o condutor da mimosa, na sua viagem de regresso ao monte, onde o esperava a eremita companheira, teria sido acometido por um “coma induzido”, provocado pelo fermentado môsto, fabricado na adega do Padre Eterno, na Vila de Borba. Num troço do caminho, onde durante o dia, quase ninguém por ali passa, e sem a Mimosa ou mesmo o fiel Poeta, lhe poderem valer, esvaído sem sentidos, o nosso amigo, cai da jumenta, esquálido, desamparado, ficando para ali sem socorro, inanimado; tal era a carraspana.

Valeram-lhe os dois inseparáveis amigos irracionais, que ao darem pelo apear forçado, do dono, teriam continuado a caminhar para o monte, como sempre o faziam, e onde estava a esposa do ´´acidentado´´ que ao vê-los chegar sem o marido, ficou alarmada; porém a Mimosa, como a tentar dar o aviso, á companheira do tio Zé, deu meia volta no terreiro do monte e sempre de orelhas hirtas e olhando para trás, como que a confirmar se estava a ser seguida, tornou a meter-se ao caminho, em direcção ao local onde inerte, tinha ficado o dono.
Durante muito tempo, se contou na Vila, que o tio Zé, quando o assunto era abordado, na sua presença, ele sempre respondia com uma displicência, que impressionava:
- Ainda bem que eu não acostumei a burra a beber vinho!
Sim! Dizemos nós.
- Sempre tem que haver alguém, nem que seja um asno, que seja como a meiga jumenta Mimosa, ou mesmo o fiel Poeta, que seja mais sensato, nestas andanças, das provas de vinhos.

Carlos Catalão Panaças

Setúbal, Domingo 29 de Julho de 2018.


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