Junho chegara..!! O sol apertava,!! Na campina alentejana, o verde tranquilo das searas mimosas, já há muito desaparecera, dando lugar ao amarelo dourado, das espigas, em acção de ceifar.
Os «ratinhos» haviam chegado, vindos da sua Beira natal, e tinham ficado, os da companha da Sobreira Formosa, na estação de Santa Eulália; os outros, oriundos de Proença-a-Nova, tinham descido do comboio, na estação de Elvas e tanto uns, como os outros, foram trazidos em carroças tiradas por parelhas de muares, para a «folha “semeada de trigo, que dando inicio á safra das ceifas, iria ser segada em primeiro lugar.
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Com o seu timbre de voz estranho ás gentes do Alentejo, e a sua indumentária muito “suis geniris”, anunciavam que tinha chegado a época de um dos trabalhos mais difíceis, a que a agricultura, obrigava as criaturas humanas.
No ar, nem a mais leve brisa, de ar fresco; apenas o amaldiçoado vento suão, trazido quiçá, lá das entranhas do demónio, acicatava barbaramente, os corpos dobrados, dos ceifeiros; homens rijos, a quem o sol tostava as carnes, sem conseguir todavia, amolecer os espíritos; só quem nunca tivesse visto os ceifeiros curvados sobre a terra, empunhando a foice na mão direita, e com a mão esquerda agarrando os caules das espigas, que numa mancheia, podia abarcar os caules que cortava de um golpe, o mais junto á terra possível, não sabe avaliar, bem a natureza deste trabalho campestre. Sentia-se a luta, no estalar dos caules, e no roçar do trigo, pelos corpos, em movimento. Ao lado uns dos outros, abarcando dois ou três regos, lá avançavam eles, deitando por terra o trigo, enquanto outros, os atadores, iam apanhando do restolho as paveias, e juntando algumas delas; atavam os molhos, que dias mais tarde, haviam de ser acarretados, para a eira.
Depois do jantar, (era assim denominada a refeição, servida por volta do meio dia), e que consistia no tradicional grão de bico com batatas, servido em grandes caldeiros, feitos de folha de Flandres, dormiam a sesta, descanso de hora e meia, que lhes parecia um segundo; acordados pelo manajeiro, espreguiçavam-se, e voltavam a ceifar: a essa hora, era um trabalho custosíssimo, mas desempenhavam-no heroicamente. Por mais que lhes doesse, esqueciam o sofrimento, e entregavam-se á empreitada, para vencerem, com vantagem; a mira de receberem a ´´soldada´´ incutia-lhe o alento, que lhes faltaria, sem esse incentivo; mas o estímulo do dinheiro, avigorava-lhes a coragem.
Regueiros de suor fétido, encharcava-lhes os corpos afogueados e semi-nús, despertando-lhes sedes abrasadoras, que lhe escaldavam o sangue e lhes queimava a língua; era ver a ansiedade, com que aceitavam a barrica da água, que lhes era oferecida pelo tardão, com que avidez tomavam a vasilha, e a emborcavam, esvaziando-a ás goladas, passando-a de mão em mão, até a esgotarem..!! A água era o seu alento; a sofreguidão com que a ingeriam, bem o patenteava; mitigada a sede, ei-los a manobrar de novo, prosseguindo resolutos, como se fossem guerreiros, em campo de batalha; poucos os igualavam; ninguém os excedeu; homens de ferro, com têmpera de aço; não havia seara opulenta, que os detivesse. Na alucinação da refrega, quando as ideias se concentravam no trabalho, só se lhes ouviam os passos, ao caminharem nos bamburrais, e o estalejar dos caules das espigas, tombadas pelos golpes das afiadas foices; que destreza de golpes..!! Aquilo, era uma caminhar para a frente, deixando um rasto de paveias sobre o restolho, que parecia um campo de batalha, juncada de flores.
Os rapazes aprendizes, viam-se numa fona, a reunirem á pressa, as inúmeras paveias, estendidas no restolho; mal enfeixam estas, já outras, aguardam, e após estas já outras, e outras, não lhes consentiam demora; num assopro torcem o nagalho, enfeixam e atam, correndo, para não se atrasarem.
Durante as temporadas só folgavam estes valentes ceifeiros, no dia consagrado a S. João Baptista, folga essa, que aproveitavam para visitar Barbacena, e confraternizarem em conjunto, com as maltas de Pena Clara, e Fontalva, compostas também por homens beirões, e cantarem ao desafio, com homens de Barbacena.
À noite, com a companha reunida em círculo, ceavam a tradicional “miga gata”, comida feita à base de pão, adormecendo em seguida, sobre o restolho, tendo como travesseiro, um molho de trigo, ceifado por eles, durante o dia, recuperando energia, para que logo que a manhã rompesse, darem início a mais uma jornada de ceifa; era assim, a vida dos «ratinhos», que durante o Verão vinham da Beira Baixa, fazer a safra da ceifa, ao Alentejo.
Setúbal, Agosto de 2018
NOTAS:
As migrações anuais dos trabalhadores rurais do Concelho de Sardoal, para as ceifas, no Alentejo, onde eram conhecidos por “ratinhos”, assumia grande importância na economia familiar, especial para os trabalhadores das aldeia . . .
A ceifa, sobretudo, era a esperança de equilíbrio daqueles orçamentos bem modestos. Era pena que obrigasse a migrar. O afastamento da mulher e dos filhos pequenos, a interrupção do “derriço” ou namoro, para os mais novos, a ausência do noivo que tantas vezes, aguardava o dinheiro da ceifa para as últimas compras do reduzido enxoval - eram o senão daquela esperança.Mas a ceifa tinha outro aspecto muito positivo, além do económico - concretamente para os jovens. Era a ocasião de um confronto competitivo, não à base do desporto, que não havia, mas do trabalho - competição psicologicamente necessária, esta ou outra, para que o jovem se possa rever naquilo de que é capaz.
Ir à ceifa representava, só por si, o sair do mundo infantil, deixar de ser a criança, a quem não se passa cartão, para entrar no mundo dos adultos . . .
Em 1926, creio que as “soldadas” se fixaram em 400$00. Se o trabalho fosse feito só por homens -.”Camaradas”, cada um receberia 400$00, o que para cerca de 40 dias, equivaleria a 10$00 diários, com a comida à conta do patrão. Na aldeia não havia trabalho e um ou outro dia que se conseguisse, o salário não chegava ainda aos 5$00 e “secos” ou a “seco”, como se dizia. O alqueire de milho orçava então pelos 10$00…. Não mais esquecerei aqueles quarenta dias, vividos numa comunhão de sentimentos e situações, desde o “manageiro”, ao mais pequeno “novel”, em que cada um dava o seu melhor, para maior rendimento daquela dura empreitada. Também, é verdade que se alguém cedesse à mandriice, não tardaria em ver a “horta” talhada à sua frente e a sentir os torrões a cair, desapiedadamente, sobre ele.
IN -
UM “TORNEIO” SINGULAR PARA OS “RATINHOS” DA BEIRA
POR: ANACLETO PIRES MARTINS
“Estudos de Castelo Branco”-nº6 - Dezembro de 1981
Transcrito com autorização do Autor
- Castelo Branco, 12 - 2 -1980
- http://www.sardoalmemoria.net
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